
No momento em que pôs os olhos em Aurora, Malcolm teve a certeza de que estava diante da criatura mais doce e meiga da face da Terra. Não podia suportar a ideia de que ela fosse submetida ao destino que lhe esperava e não mediu esforços para libertá-la. Lutou contra tudo e contra todos para protegê-la, mas a vítima acabou sendo ele. Vítima dos encantos de Aurora que lhe roubou o coração.
CAPÍTULO I
Em pé no convés, o duque de Atherstone observava a atracação de seu iate, o Sea Lion, no porto da Argélia. A manhã estava apenas iniciando, e havia no ar aquela estranha e brilhante luminosidade, precursora de um dia de sol ardente. A baía, com suas plataformas de um branco ofuscante, tendo ao fundo as montanhas cor de esmeralda contrastando com o intenso azul do mar, exibia um cenário quase irreal. Mas o duque, com a testa franzida e o olhar frio, apenas acompanhava a manobra lenta de seu iate no cais, e o movimento usual da multidão que se aglomerava a chegada de um novo barco. Ele dormira mal durante a noite anterior e ainda estava dominado pela mesma ira que o fizera ir ao porto de Monte Carlo e pedir ao capitão de seu iate que se preparasse para zarpar, imediatamente. Era essa a maneira habitual do duque dirigir sua vida. Todos deviam estar sempre ao seu dispor para qualquer decisão, por mais repentina que fosse. Nas diversas casas que possuía, os empregados
nunca eram prevenidos por ocasião de suas visitas. Podiam se passar muitos meses entre uma visita e outra, mas ele queria encontrar tudo em perfeita ordem, sempre. Viajava geralmente sem bagagem, pois tinha roupas suficientes em suas várias residências. Ainda que seu secretário e o criado de quarto quase sempre fizesse parte de seus acompanhantes, havia também substitutos bem treinados em todos os lugares para onde ia, o que lhe permitia viajar sem os dois. O duque tinha a reputação de ser um perfeccionista. Exigia que seu conforto fosse à meta primordial de seus serviçais. E essa vida, que devia ser sem nuvens a sombrear o horizonte, sofria inesperadamente as consequências de violento temporal. Fora na verdade uma tempestade o que o fizera perder a paciência na noite anterior, e o que o levara, de uma hora para outra, ao centenário porto da Argélia. Era esse porto com razão designado como “O Jardim dos Deuses”, mas a beleza que ostentava não diminuía a irritação do duque e nem lhe amenizava o ríctus de desgosto nos lábios crispados.
O Sea Lion atracou, comandado unicamente pelos tripulantes de Sua Graça, que ignoraram as instruções dos práticos do local, apesar do aspecto ameaçador que eles possuíam. Antes de desembarcar, o duque desceu para tomar o desjejum no salão. Ele sentou-se à mesa com uma expressão de tamanho enfado que causaria surpresa se apreciasse qualquer dos pratos apresentados. Os criados serviram-no guardando respeitoso silêncio. Eram bem treinados e não abririam a boca a menos que lhes fosse dirigida a palavra. Mas, gradualmente, após provar a meia dúzia de iguarias que lhe foram oferecidas, o duque pareceu um pouco mais relaxado. Depois do café da manhã, ainda sem falar nada, ele ficou sozinho no luxuoso salão, rememorando os fatos da noite anterior, no cassino de Monte Carlo. O Sea Lion — o Leão do Mar —, como era com razão chamado, tinha sido entregue à Sua Graça há um ano. Ao sair do cassino, ele se lembrara, no meio de sua fúria, de que o iate estava no porto. No momento em que entrava na carruagem, seu secretário, o coronel Grayson, descera correndo as escadas do cassino, um segundo antes de o veículo partir.
— O senhor vai embora? — ele perguntara, com ar de incredulidade. — Vou! — o duque respondera, lacônico. — Não se esqueceu da festa de amanhã, pois não? Tudo foi preparado conforme Vossa Graça ordenou. — Cancele a festa! — Sim, senhor — o coronel Grayson murmurara, fitando-o surpreendido. — E agora, diga ao cocheiro que me leve ao iate. E, mais, Grayson, ponha toda aquela gente para fora de minha casa. Com exceção da Sra. Sherman, é claro. — Devem sair imediatamente, senhor? — Sim, amanhã de manhã. O duque falara de maneira categórica, não deixando ao secretário nenhuma possibilidade de retrucar. Um lacaio usando a libre dos Atherstone, tão conhecida na Inglaterra como a da família real, havia fechado a porta da carruagem. Com certo esforço, o coronel Grayson dissera ao cocheiro: — Sua Alteza deseja ir ao iate. — Muito bem, senhor. — O lacaio pulara para a boleia e o cocheiro chicoteara os cavalos, que começaram a descer a rampa que ia do cassino ao
porto. E enquanto o iate iniciava a viagem, esgueirando-se por entre outras embarcações ancoradas na pequena baía, o duque permanecera no convés, olhando para o espaço. Não via as luzes de Monte Carlo, que davam à cidade uma aparência de conto de fadas, nem as estrelas brilhando num céu muito escuro. Preocupava-se apenas com a escuridão da ira que lhe enchia a mente e excluía dela todo o resto da humanidade. “Como é possível haver ficado nessa posição intolerável e não ter previsto o que iria acontecer?”, ele se perguntava. Ele sabia, desde tenra idade, ser um dos melhores partidos de todo o Império Britânico. A mansão de seus pais só era comparável em grandiosidade à da família real, e tudo seria seu algum dia. A grande extensão de terra que cercava o castelo de Atherstone, as vastas planícies na Escócia, os pavilhões de caça em Leicestershire, as centenárias ruínas em Cornwall e as terras que as circundavam, além de Atherstone House, em Londres, tudo pertenceria a ele, mais cedo ou mais tarde.
E isso era apenas uma pequena parte do incrível número de propriedades que possuía. Eram tantas que seria impossível lembrar-se de todas elas. Quadros, móveis, tapeçarias, tesouros juntados pela família por gerações, sem contar um haras para cavalos de corrida, carruagens, enfim, tudo o que um homem pudesse pensar e querer ele tinha. E ainda havia propriedades fora do Reino Unido: uma casa em Paris, um castelo de Ardennes onde se podia caçar, um palácio em Veneza e uma vila em Monte Carlo. Seria possível possuir tudo isso e não ser feliz? Quando o duque terminou os estudos em Eton, havia grande quantidade de mães usando todo tipo de armas para prendê-lo, para colocálo numa posição em que fosse obrigado a se casar com suas filhas. Estando de bom humor, ele ria de todas as tramas que elas empregavam para obrigá-lo a fazer o pedido que o prenderia a uma mulher pelo resto da vida. Mas ele se decidira a não se casar até se sentir absolutamente inclinado a isso, e nada o levaria a ser capturado como um animal no laço, da maneira que alguns amigos tinham sido. O protocolo da sociedade vitoriana tornava difícil
a um homem livre evitar as armadilhas preparadas para ele. Falar com uma mulher solteira desacompanhada, por mais de alguns minutos, era o mesmo que pedi-la em casamento. Dançar com ela duas vezes provocava falatórios e a terceira vez era equivalente a uma notícia de noivado nas colunas do jornal. Não causava surpresa, então, que homens desejosos de manter a liberdade evitassem, como a uma praga, as debutantes, e dedicassem toda a atenção e afeto a mulheres casadas. Era bem menos arriscado enfrentar a fúria de um marido ciumento que as artimanhas de uma ambiciosa “mamãe”. Ademais, a sociedade da época fazia as coisas bem fáceis, em se tratando de ligações entre pessoas de certa idade. Seguindo o exemplo do alegre príncipe de Gales, os homens daquele tempo descobriram que as lindas mulheres, após dez anos de casadas e quando já tivessem presenteado os maridos com um filho e herdeiro, ansiavam por ver a luz da admiração nos olhos de outros homens. O duque, claro, nunca se fazia de rogado aos convites de mulheres, convites esses que vinham na forma de sorrisos provocantes e sofisticados, e
olhares lânguidos sob cílios compridos e escuros. Ele passara de uma linda mulher para outra ou, como um crítico uma vez dissera, “de boudoir a boudoir”, até encontrar lady Millicent Wealdon. “Millie” o encantara desde o primeiro instante em que a vira. Era morena e esbelta, de curvas acentuadas e cintura fina, formas apreciadas na época. Filha de duque, tinha sido rebelde em muitos aspectos desde o dia em que saíra da escola. A beleza de lady Millie a tornara segura de que o mundo estava a seus pés. Os pais, percebendo os problemas que ela lhes traria, casaram-na o mais rápido possível, quando Millie só tinha dezessete anos. E com um homem trinta anos mais velho! Lorde Wealdon, o marido, era rico, importante, persona grata na corte, mas cansativo e entediante. Além disso, tinha orgulho da beleza de sua esposa. Lady Millie foi bastante inteligente em fazê-lo acreditar que se divertia muito com a adoração de seus admiradores, de um modo geral, não havendo da parte dela nenhum interesse individual. Talvez houvesse alguma verdade nisso até o duque aparecer. No momento em que se olharam, um desejo
impetuoso, impossível de controlar, os fez se unirem. O duque amara várias mulheres, mas nunca havia encontrado nenhuma tão insaciável nem tão estimulante como lady Millie. Eles não podiam esconder essa paixão e todo mundo sabia disso. Mas lorde Wealdon parecia não ver o que se passava e muito poucas pessoas condenavam esse procedimento. Porém, inesperadamente, lorde Wealdon faleceu. Lady Millie ficou de luto fechado, pois a rainha Vitória, ao enviuvar, dera o exemplo e esperava que todas as viúvas a seguissem. No começo foi difícil ao duque ver lady Millie com frequência, embora tenha havido alguns encontros rápidos nos seis primeiros meses. Depois disso, tudo ficou mais fácil. Eram convidados às mesmas festas e as anfitriãs se davam ao cuidado de hospedá-los em quartos próximos um do outro, quando era o caso de passarem dias no local. Lady Millie não podia ainda ir a funções da corte, a corridas de cavalos e a outras festas mais em evidência, porém, quando estava em Londres, ficava numa casa muito próxima de Atherstone House. Ela e o duque reiniciaram então o relacionamento
amoroso com todo o ardor, excitação e entusiasmo dos primeiros dias em que se conheceram. Mas o duque acabou se aborrecendo, não somente por ter que guardar segredo sobre esses encontros, como também pelo fato de lady Millie insistir em tê-lo sempre ao lado dela. Ele estava acostumado a ser livre. A ir de Londres ao campo; de uma corrida de cavalos às competições de criquê; de Cowes, onde invariavelmente ganhava as corridas, a Epsom, onde possuía cavalos em treinamento. E tudo isso sem planejar previamente. Lady Millie começou a ficar amuada sempre que ele a deixava e também quando voltava para vê-la, depois dessas viagens. O duque achava a situação insustentável e irritante. Finalmente, quando o luto se findou, ela decidiu, sem o consultar, que iria a Monte Carlo. A enorme vila toda branca, com seus fantásticos e exóticos jardins tropicais, fora construída pelo pai do duque e era suficientemente grande para abrigar cinquenta hóspedes. Não havia razão para o duque não desejar encher a casa de convidados, exceto o fato de que ele tencionava passar algumas semanas sozinho, a
fim de repousar, após inverno extenuante. Extenuante? Sim, em parte devido a atividades esportivas mas também por estar ele profundamente envolvido em política. Embora seus amigos não soubessem, tinha grande influência na Câmara dos Lordes. — Será muito bom ir a Monte Carlo outra vez! — lady Millie opinara para convencê-lo. — Não podemos mais continuar neste jogo de esconde-esconde! Além disso, daqui a um mês vou tirar o luto e serei uma mulher livre, enfim! Não havia dúvida sobre o que ela queria dizer por “livre”, e o olhar que lançou ao duque foi um convite aberto a um pedido de casamento. Mas tal não aconteceu. Ele tinha na mente uma vaga ideia de que teria inevitavelmente de se casar com lady Millie, mas alguma coisa o impedia de se declarar. Irritava-se muito quando seus amigos punham seu nome junto ao de Millie, com segundas intenções. Contudo, ele via nela uma esposa aceitável. Ambos pertenciam à mesma camada social e Millie seria com certeza excelente anfitriã. E os diamantes dos Atherstone eram complemento perfeito à beleza dela.
Mas, ao mesmo tempo, não estava certo de querer tê-la como esposa. Quando Millie estava em seus braços, quando os lábios dela procuravam os seus com avidez, o duque sentia-se mergulhado num mundo sensual e excitante que o deixava alheio a qualquer crítica desfavorável. Então, esquecia-se de tudo, menos da paixão que ela lhe despertava. Ao chegarem a Monte Carlo, uma aversão estranha da parte dele, começou a surgir. Não queria se expor como amante de Millie aos olhos de todos os hóspedes. Não podia explicar o porquê de tão esquisita revolta. Havia alguma insinuação no modo como os amigos lhe diziam “boa-noite” e “bom-dia”. Isso o irritava. Também não gostava de se rastejar pelos corredores de sua própria casa, depois que todos estavam recolhidos, para se dirigir ao quarto de Millie, fechando a porta com extremo cuidado. Sabia que ela o esperava como uma leoa, com os braços abertos para recebê-lo e torná-lo cativo do insaciável desejo que a dominava. Nos primeiros dias da estada em Monte Carlo, lady Millie não falou nada sobre casamento. Era bastante esperta e experiente para saber que não
devia tomar a iniciativa. No entanto, havia uma acusação no modo como se dirigia a ele e nas pequenas indiretas, mal disfarçadas, pelo fato de ele não se declarar. Mas, para o duque, uma coisa era uma mulher despertar seu desejo e outra exigir isso como se fosse um direito seu.
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